Sexta-feira, 10 de dezembro de 2021, encerrou-se, em primeira instância, o julgamento dos quatro acusados de serem os responsáveis pelas mortes de mais de 200 pessoas na boate Kiss. A mídia foi responsável pela condenação dos réus?
A literatura e a ficção por vezes se tornam realidade. Nos livros de romance policial, muitas vezes, a narrativa se confunde com casos cotidianos, que acompanhamos pelas páginas de jornais e redes de TV. Um bom exemplo é a obra – A honra perdida de Katharina Blum, de Heinrich Böll, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1972.
A história de Katharina Blum, contada de trás para frente, cujo narrador recolhe informações dos (fictícios) autos do inquérito policial e acompanha as investigações pelos jornais, é simples: uma jovem empregada doméstica, pelo seu bom serviço e honestidade, cai nas graças de uma família de classe média-alta, que a contrata como governanta, e a ajuda a ter uma vida mais digna, dando um emprego fixo, emprestando-lhe dinheiro para que comprasse sua própria casa, não lhe cobrando alimentação no trabalho, etc. Os problemas começam quando Katharina, inadvertidamente, tem alguns encontros afetivos com um homem procurado pela polícia, supostamente por ser um “espião comunista”.
Da noite para o dia, a vida de Katharina vira um inferno e os jornais, inflamados pela histeria coletiva anticomunista, só fazem o que precisam para continuar vendendo sem parar: dilaceram Katharina viva diante dos leitores.
Se, antes, Katharina era uma mulher serena e respeitosa por ser uma empregada, para os jornais, ela sempre foi “quieta demais e tinha atitudes suspeitas”; se, antes, Katharina era só uma trabalhadora solitária que estava sendo ajudada pelos patrões a comprar sua casinha, agora ela tinha “patrimônio incompatível com a sua renda de governanta”.
O livro só não pode ser chamado de tragédia anunciada porque Böll abre o texto dizendo como termina – mas a verdade é que nenhum leitor precisava saber do fim da história para prever que Katharina era só uma pobre desgraçada que serviria de bode para sacrifício perante a opinião pública.
Ver Luciano Bonilha, o roadie (figura que carrega água e equipamento de som), ser condenado por homicídio doloso pelos jurados do Caso da Boate Kiss e levar pena de dezoito anos de reclusão consegue ser um cenário mais dantesco que o de Katharina. No romance de Böll, o assédio da mídia - que chega ao pico com o assédio sexual de um jornalista – leva a protagonista a perder o controle e meter um tiro na cara do assediador. Katharina, levada às raias da loucura pelas fake news, acaba, de fato, cometendo um crime. E sua história termina com ela se entregando à polícia, por vontade própria e sem advogado, para ser submetida a julgamento.
O “crime” pelo qual Luciano foi condenado foi o de, a pedidos de um amigo, comprar e acender o artefato pirotécnico que, desgraçadamente, atingiu o teto da boate na fatídica noite.
Tudo é tão absurdo que testemunhas no processo falaram em alto e bom som para o Júri: “Se o Luciano tivesse se acidentado no dia e não pudesse trabalhar, ele teria sido substituído por qualquer outra pessoa.”
Luciano, esse homem aos prantos na foto, que é carregado pelos seus advogados ao Plenário, é a famosa figura do “trabalhador descartável”; aquela pessoa que, por “50 reaizinhos”, vai passar a madrugada inteira trabalhando no meio de gente dançando e bebendo drinks mais caros que sua noite inteira de serviço, indo para lá e para cá feito um burro de carga, para conseguir uma pontinha de lugar ao sol no dia seguinte.
Esse é um dos homens que a mídia pintou como um dos assassinos das duzentas e quarenta e duas vítimas fatais da Boate Kiss. Esse é um dos homens que foi, efetivamente, chamado de assassino no Plenário do Júri por mais de uma testemunha do processo. Esse é um dos homens cuja condenação é “necessária para respeitar a dor das famílias das vítimas”.
- E dito tudo isso, ficam aqui os nossos cumprimentos a todos os profissionais de mídia que, no correr desses oito anos, foram responsáveis pela espetacularização desse processo e defumaram tanto essa gente que não poderia não ter condenação.
- Nossos cumprimentos aos profissionais que, protegidos pelo manto do “dever de informar” e pela vaidade de “dar voz às famílias”, construíram a lunática narrativa de homicídio doloso que - ao menos por enquanto - vai mandar Luciano e outros três à cadeia.
- Nossos cumprimentos a todos os meus colegas e amigos que, ainda hoje, acreditam que a função do Direito Penal é “dar conforto à vítima” e que “o Direito Penal no Brasil é frouxo”.
- Nossos cumprimentos a todas as pessoas que, por estarem “desiludidas” com o Judiciário, acham que isso é desculpa para sair condenando criminalmente as pessoas de qualquer jeito.
É verdade que não foram vocês que, compondo o Conselho de Sentença, votaram pela condenação de Luciano e corréus. Mas foram ideias que vocês defendem, que justificaram – na cabeça de gente leiga (Júri) – a razão para condenar uma pessoa como Luciano. Assim como Luciano é “substituível” como trabalhador, os “comuns do povo” que se tornam jurados também são. Se foi gente com essas ideias na cabeça que se sentiram justificadas para mandar esses quatro para a cadeia, independentemente do que diz o nosso Direito, você, que acredita e defende a mesma coisa, também poderia ter dado esse voto. Direta ou indiretamente, toda a sociedade contribuiu para jogar esses quatro na máquina de moer gente que é o nosso sistema de justiça criminal.
E assim como Luciano foi condenado por homicídio doloso, sendo que qualquer pessoa poderia estar no seu lugar, o Júri da Boate Kiss manda ao Brasil a mensagem de que qualquer um de nós também pode ser condenado por absolutamente coisa nenhuma.